Conectamos Passado, Presente e Futuro, em um só lugar

Máscaras Africanas e Cubismo: O Catalisador Ontológico da Arte Moderna

Máscaras Africanas e Cubismo: A Inspiração Revolucionária de Picasso.

O Cubismo, movimento que irrompeu em Paris no início do século XX sob a égide de Pablo Picasso e Georges Braque, não representou somente uma mudança estética, mas o colapso radical de um paradigma de representação visual que dominava a arte ocidental desde o Renascimento. 

Essa revolução, em sua fase proto-analítica, foi catalisada pela autoridade estrutural e ontológica da arte africana, que ofereceu aos artistas de vanguarda a licença formal para romperem com a mimese e a perspectiva tradicional.

I. O Rompimento da Tradição e a Busca pela Alteridade

O ambiente intelectual do fin de siècle parisiense era marcado por um profundo questionamento da unidade cultural e espiritual do século XIX. 

A insatisfação com o preciosismo burguês e o academicismo pictórico levou as vanguardas à procura de uma linguagem nova capaz de expressar a complexidade da era moderna, influenciada por novas concepções de espaço-tempo e pela evolução científica.

A arte ocidental, presa ao modelo da verossimilhança, necessitava de uma “libertação da tradição”. 

Muitos artistas voltaram-se então para a arte de civilizações não-europeias, buscando um “vigor originário” e uma “força mágico-religiosa” que julgavam ter se perdido na Europa. 

A arte africana, com seu caráter escultural, sua abstração intrínseca e sua esquematização, tornou-se o contraponto ideal.

A. A Convergência Formal do Proto-Cubismo

A gênese do Cubismo (1907-1909) se deu pela convergência de três influências cruciais, cada qual oferecendo um instrumental específico para a desconstrução da realidade:

  1. O Precursor Formal: Paul Cézanne. Cézanne estabeleceu o instrumental teórico para a geometrização, propondo tratar a natureza “conforme o cilindro, a esfera, o cone”. Para o Cubismo, essa redução não era uma simples superficialidade, mas um instrumento mental para efetuar uma nova experiência do real.
  2. A Abstração Intermediária: A Escultura Ibérica. Antes da descoberta africana, Picasso já explorava a simplificação e a frontalidade em obras proto-cubistas, afastando-se do naturalismo em favor de uma simplificação arcaica, servindo de etapa crucial na preparação do olhar para a abstração radical.
  3. O Catalisador Ontológico: A Arte Africana. Se Cézanne forneceu a geometria, a arte africana ofereceu a legitimidade estética e a intensidade expressiva para levar a abstração ao extremo. A busca por essa fonte de poder na arte funcionou como uma reação social e ontológica, validando a quebra radical da tradição pictórica e justificando o artista não mais como mimetista, mas como um agente de força.

II. O Encontro Revelador e o Conceito de “Exorcismo”

A decisiva revolução formal de Picasso está diretamente ligada a um encontro que ele próprio descreveu como epifânico: sua visita ao Musée d’Ethnographie du Trocadéro em junho de 1907.

Embora artistas como André Derain e Henri Matisse já admirassem as formas expressivas da arte tribal (conhecida então, de forma redutora, como Art Nègre), a experiência de Picasso no Trocadéro foi profundamente transformadora. 

Isolado entre os artefatos, que inicialmente achou “nojentos”, ele sentiu que as máscaras não eram meros objetos de arte, mas “coisas mágicas,” intercessores que se colocavam “contra tudo, o todo; contra os espíritos desconhecidos e ameaçadores”.

Picasso identificou-se com essa função combativa — “Eu também sou contra tudo… tudo é um inimigo!” — e compreendeu que a escultura africana servia como “armas para auxiliar as pessoas a evitar obedecer aos espíritos”. Essa revelação redefiniu o propósito da arte para ele.

A. Les Demoiselles d’Avignon como “Primeira Pintura de Exorcismo”

O quadro Les Demoiselles d’Avignon (1907) é o marco fundador do Cubismo Proto-Analítico. Sua importância reside não somente no experimento formal sobre a dissolução da perspectiva, mas em sua intenção transcendental.

Picasso afirmou que a obra veio como sua “primeira pintura de exorcismo!”. A tela não é somente uma desfiguração, mas uma tentativa de dar à arte uma função transcendental e combativa, alinhada ao poder mágico-religioso percebido nos fetiches africanos. 

O interesse primário de Picasso era a expressão e as formas das máscaras, que lhe conferiam a autoridade para a abstração e a desfiguração radical das figuras femininas.

III. A Transição Formal e o Mapeamento Estilístico

O impacto da arte africana se materializou no Período Africano de Picasso (1907-1909), evidenciando a transposição de uma morfologia escultural para a pintura e, posteriormente, para a escultura cubista.

A. Análise Formal em Les Demoiselles d’Avignon

A tela das Demoiselles revela uma síntese de influências. 

Enquanto as figuras à esquerda refletem a Escultura Ibérica, as duas figuras femininas da direita foram repintadas radicalmente após a visita ao Trocadéro, ostentando cabeças que são estilizações diretas de máscaras, notavelmente de grupos como os Fang ou Kongo-Vili.

Formalmente, o quadro opera a quebra da perspectiva tradicional: a figura agachada no canto inferior direito, por exemplo, condensa múltiplos pontos de vista (cabeça de frente e corpo de costas em pose contorcida). 

Essa representação simultânea de diferentes ângulos é o primeiro indício da desconstrução espacial que definiria o Cubismo Analítico.

B. Da Essência Ritual à Geometrização Cubista

A arte africana forneceu o modelo para romper com o naturalismo por ser intrinsecamente caracterizada por:

  • Simplificação e Esquematização: A redução geométrica das formas faciais (olhos, nariz e boca reduzidos a formas básicas, como visto nas máscaras Dan e Grebo) serviu de modelo para a desumanização e abstração dos rostos nas telas de Picasso.
  • Frontalidade e Hieratismo: A visão atemporal e de confronto direto da estatuária africana contrastou com o perspectivismo ilusionista europeu, fornecendo um modelo de arte focado no poder e na permanência.

C. A Mecânica do Volume: Côncavos e Convexos

O elemento técnico mais significativo extraído da morfologia das máscaras africanas foi a manipulação de planos côncavos (reentrantes) e convexos (salientes) para gerar volume e tensão plástica. 

A justaposição e interpenetração dessas superfícies no plano pictórico foi o mecanismo visual que permitiu a Picasso e Braque superar a representação tridimensional em duas dimensões.

Essa técnica de alternância de planos possibilitou a “representação simultânea de múltiplos pontos de vista” do objeto, sendo o núcleo formal da busca pela “quarta dimensão” por parte dos cubistas, que visava a eternização do espaço em todas as direções.

IV. O Cubismo Compartilhado e a Estrutura Braque-Picasso

Embora Picasso tenha sido o iniciador da revolução proto-cubista, o movimento se consolidou como um sistema reprodutível através da intensa colaboração com Georges Braque, co-fundador do Cubismo.

O Cubismo Analítico (1908-1914) foi desenvolvido conjuntamente, marcando o casamento da leitura radical de Cézanne com a estilização africana

Braque aplicou a decomposição do objeto em formas geométricas simplificadas em paisagens (Casas em L’Estaque, 1908) e naturezas-mortas. 

O fato de ambos os artistas chegarem a conclusões estilísticas semelhantes prova que a influência africana resultou em um sistema artístico coerente que abriu caminho para a abstração.

V. Perspectivas Críticas e a Colonialidade da Estética

Uma análise exaustiva dessa influência deve abordar o contexto histórico e ético no qual a apropriação ocorreu: o período de colonização europeia, um fenômeno que a crítica pós-colonial define como “estetização colonial”.

  • Descontextualização: Os artefatos africanos (máscaras e esculturas) eram frequentemente retirados de seus contextos sagrados e rituais (funções mágico-religiosas e comunais) e inseridos em um “espaço anacrônico” nos museus etnográficos de Paris.
  • Olhar Seletivo: Os artistas de vanguarda, embora buscando a ruptura com o Ocidente, decifraram os artefatos “por camadas”, captando as dimensões que lhes eram convenientes — a forma, a expressão, a intensidade — sem se deter no esforço de compreender o objeto em sua cultura original.
  • O Paradoxo: O movimento que se beneficiou imensamente da extração dessas formas para impulsionar sua própria revolução estética falhou em reconhecer a tradição africana em si. A apropriação cultural, nesse contexto, exige uma reavaliação da dívida estética e ética do Modernismo, levantando debates sobre a devolução de artefatos.

VI. Conclusão: O Legado Estrutural e o Reconhecimento Ético

O Cubismo, a mais importante revolução formal do século XX, foi impulsionado pela força expressiva e a gramática estrutural das máscaras tradicionais africanas.

A arte africana atuou como o fundamento estético e a autoridade ontológica que permitiu ao Cubismo:

  1. Resolver a Representação: Traduzindo a plasticidade escultórica africana (planos côncavos e convexos) em uma representação bidimensional da simultaneidade.
  2. Legitimar a Abstração: Provando que a redução geométrica (sugerida por Cézanne) poderia gerar uma intensidade expressiva e uma força estética superiores à mimese ocidental.
  3. Redefinir o Propósito: Transformando o ato de pintar em um “exorcismo” e conferindo-lhe um papel mais profundo na vida comunitária.

Em última análise, as máscaras africanas dotaram o Cubismo de sua sintaxe revolucionária. A análise contemporânea exige que essa contribuição vital seja reconhecida, celebrando o inegável impacto formal ao mesmo tempo, em que se aborda a dimensão da colonialidade e da descontextualização que permitiu essa assimilação estética, promovendo a ressignificação da história de forma ética e justa.

Se gostou deixe seu cometário. Veja também estes Posts:

Este blog utiliza cookies para garantir uma melhor experiência. Se você continuar assumiremos que você está satisfeito com ele.